O livro «o remorso de baltazar serapião»
não deixa dúvidas acerca do talento de Valter Hugo Mãe. Neste romance, ele (re)cria a
mundividência medieval de um modo criativo e pertinente, utilizando uma
linguagem também ela própria recriadora do contexto temporal. É claro que o que
se conta é uma história repleta de violência medieval, violência psicológica,
física e sexual que tem como principal alvo as mulheres, cuja desgraçada
condição é aqui tremendamente explorada, mas também nos faz sorrir com o
ridículo de determinada maneira de pensar ou de agir e que o narrador, baltazar
Serapião, de um modo até inocente e engraçado, relata. O remorso de baltazar serapião,
que casa com a bela ermesinda e tal é o medo de estar a ser encornado que a vai
«mutilando» a cada acesso de raiva, podia ser também o remorso de seu pai,
afonso serapião, que, como o filho, entortou um pé à mulher e arrancou-lhe as
entranhas por achar que o inchaço do abdómen era uma gravidez ilegítima, ou até
o remorso de dom afonso, o explorador sexual das criadas, dono das terras onde
a família serapião sobrevive e se auto-destrói, ou mesmo o remorso do próprio
el-rei, que pouco se importava com as verdadeiras condições em que vivia o seu povo
ou com a violência com que agiam, por andar mais preocupado com os seus luxos.
O remorso de baltazar é, na
verdade, o remorso de muitas gerações de homens que maltrataram as mulheres,
que as subestimaram, que sobrepuseram os preconceitos religiosos e as
superstições ao amor, à amizade, aos laços familiares, ignorando a dor que era
infligida em nome de uma honra duvidosamente mantida. baltazar amava ermesinda
pela sua beleza e candura, mas nunca foi capaz de a defender, de a preservar,
só porque era mulher e porque o mais certo era ser culpada… Quando a defende, é
tarde demais. Um livro verdadeiramente absorvente.
Inicia-se assim…
«a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos.
mal tolerados por quantos disputavam habitação naqueles ermos, batíamos os cascos em grandes trabalhos e estávamos preparados, sem saber, para desgraças absolutas ao tamanho de bichos desumanos. tamanho de gado, aparentados de nossa vaca, reunidos em família como pecadores de uma mesma praga. maleita nossa, nós, reunidos em família, haveríamos de nos destituir lentamente de toda a pouca normalidade.» (p. 13)



















