O título do livro de onde saiu este poema é «Conjugar afetos», tarefa sempre tão premente, não é?... Por vezes, tão negligenciada. Mas sempre premente. O curioso é que, deste livro de poesia, que nunca li, conheci este único poema, que faz da conjugação dos afetos uma tarefa ainda mais difícil e, sobretudo, dolorosa porque um «eu» conjuga um afeto na ausência do «tu». Um afeto feito, por isso, de revolta e intranquilidade, mantido vivo contrariando o outro, o que quebrou os laços e instaurou a solidão como parceira desse alguém que continua a conjugar um sentimento desfeito.. desfeito, entenda-se, no diálogo que o deveria nutrir, se calhar, também desfeito por estar impregnado de sentires hostis que, de algum modo, o conspurcam, todavia, não desfeito na sua essência sensitiva, que faz dele um sentimento completo, mesmo que unilateral... Graça Pires é a autora.
Rasgo, nos pulsos, a veia onde guardei
o primeiro sinal da tua ausência.
Esvaio-me em sangue, ou em raiva,...
como se a morte fosse o único modo
de resgatar os sentimentos
pelo percurso do coração.
É estranho como consigo amar-te,
mesmo quando em mim se quebram
todos os mares intranquilos
e o corpo se despedaça contra as fragas
de um pervertido monólogo.
É estranho como decidi partir, presa ao teu rosto,
contra a vertigem de querer encontrar,
na tua mão, a linha da minha vida. É estranho.
Há agora um lugar onde é perigoso o amor.
Sou a porta aberta a todos os pássaros
a caminho do sul e enrolo o pensamento
na revolta de não poder seguir-te,
de não poder querer-te,
de não poder esconjurar no teu abraço
todas as minhas culpas.
Graça Pires, 'Conjugar afectos'
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